Sou avesso à idolatria, seja de pessoas ou de fatos históricos, por exemplo. No caso de Millor Fernandes (1923-2012), que morreu dia 27, cheguei perto de tê-lo como ídolo existencial. Admiro também Chico Anysio, que se foi dia 23, e a “rainha do choro” Ademilde Fonseca, que se despediu da gente dia 27 também. Há que se admirar gênios e artistas.
Folha de S. Paulo e Estado de Minas, dia 29, seguiram a mesma linha em edições de capa, destacando uma frase de Millôr Fernandes – com quem fiz uma longa entrevista em 1975, em Campinas, quando era um principiante no Diário do Povo. ‘‘A gente só morre uma vez. Mas é para sempre’’.
“Autodidata em todas as artes às quais se dedicou, Millôr começou a trabalhar cedo na imprensa, aos 14 anos. Com 19, já na revista O Cruzeiro, inaugurou estilo único de ler a realidade, não deixando escapar nem mesmo temas considerados tabus, como a morte: “Não tenha medo de morrer. Talvez não haja o desconhecido, haja um velho amigo”, reporta o Estado de Minas.
DEFINIÇÃO PRIMOROSA
Já o Correio Braziliense lembra que Millôr notabilizou-se principalmente como frasista. Sobre jornalismo, cunhou uma definição primorosa: “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”.
Na minha entrevista, juntamente com a de Ziraldo, Millôr Fernandes afirmou que, para ele, “tudo é político-social”. Foi em maio de 1975. Chamou a imprensa de corrupta e as agências de publicidade de “centro da corrupção do nosso mundo”. “Se de repente houvesse a possibilidade de uma utopia na imprensa e ela, da noite para o dia, passasse a ser boa, toda a sociedade seria boa. Ela é um reflexo da sociedade, mas poderia fazer com que a sociedade fosse um reflexo dela”. Millor falou: “Ninguém me dá liberdade. Eu tenho a minha”. (Tinha a íntegra da entrevista gravada em “fita cassete” – meu trofeu. Emprestei para um querido tio. Meu primo, garotão, gravou um rock em cima. Sorte que guardei o velho jornal)
Quem escreveu um belo perfil de Millôr foi Ruy Castro, na Folha de S. Paulo, (29). Trecho: “Não há formato de texto de imprensa que ele não tenha experimentado: editorial, panfleto, sátira, paródia, fábula, conto, aforismo, diálogo, trocadilho, verso livre ou metrificado, haicai -tudo quase sempre associado a algum grafismo sem paralelo no Brasil. Também dirigiu revista e jornal, escreveu teatro (como autor ou tradutor), fez letra de música e foi mestre de cerimônias de espetáculos. Mas nunca fez nada disso para exibir seu virtuosismo. Cada formato, atividade ou recurso era apenas o mais adequado ao que ele quisesse dizer -e, em qualquer momento, Millôr sempre tinha o que dizer a respeito de comportamento, cultura, política, ética, ciência, religião e do que você quiser”.
Ruy Castro recorda que escreveu certa vez que, se batidos num liquidificador, Ambrose Bierce, de “O Dicionário do Diabo”, o vienense Karl Kraus e o romeno E. M. Cioran, famosos internacionalmente por suas frases, não valiam meio copo de Millôr. “Mas começo a achar que ele era páreo até para seus heróis: Bernard Shaw, no texto, e Saul Steinberg, no desenho”.
ENGANO
Na mesma edição, Janio de Freitas, em “Millôr, meu amigo”, comenta um engano. “Acompanhou Millôr desde a primeira página do “Pif-Paf” no longínquo“O Cruzeiro” e agora se mostra com toda intensidade, nos jornais, nas TVs, nas conversas sobre “o humorista Millôr”. Mas desengane-se: Millôr não era humorista. Millôr foi um pensador. Brilhante e fertilíssimo pensador. Ilimitado nos temas e incessante no seu exercício de pensador”.
Reporto-me ao texto de Ruy Castro para exemplificar o que senti ao entrevistar Millôr Fernandes, ele aos 52 anos, eu com 26. “Era impossível aproximar-se dele sem admirar sua inteligência, independência e autossuficiência – cada qualidade sustentava as outras duas e o tornava quem ele era”.
ARTISTA MULTIMÍDIA
O Brasil perdeu, dia 23, outro gênio, Chico Anysio. O Correio Braziliense (24) conta que ele era um artista multimídia, antes mesmo de a expressão ser inventada. “Começou no rádio. Fez teatro e cinema. Escreveu dezenas de livros. Compôs música. Cantou. Mas foi na TV que se consagrou como o maior humorista brasileiro de todos os tempos. Os 209 personagens que criou divertiram várias gerações de brasileiros. E bordões como “Afe, tô morta”, do pai de santo Painho, e “E o salário, ó!”, do saudoso professor Raimundo, caíram no gosto popular”.
Em “Adeus, Chico”, o Estado de Minas fez uma bela chamada de capa dia 24. “Salomé, Pantaleão, Popó, Coalhada, Bozó, Painho, Professor Raimundo, Alberto Roberto, Nazareno, Al Cafone, Alfacinha, Azambuja, Baiano, Bandeira, Bento Carneiro, Bexiga, Bonfá, Bonfim, Bóris, Brazuca, Bronco Billy, Bruce Kane, Caetano Codô, Caio Malufus, Canavieira, Caramuru, Cascata, Castelinho, Chiquitim, Cleofas, Comandante Alencar, Coronel Bezerra, Coronel Candinho, Coronel Lidu, Coronel Limoeiro, Coronel Lindomar, Delegado Matoso, Divino, Dona Dedé, Dona Ilária, Doutor Rosseti, Doutor Salgado, Esquerdinha, Flora Romão, Franciscano, Frota, Fumaça, Galileu, Gastão, Genival, Haroldo, Hilário, Jean Pierre, Jovem, Justo Veríssimo, Karlos Kafunga, Lingote, Linguinha, Lobato, Lobo Filho, Lord Black, Maria Baiana, Mariano, Meinha, Milton Gama, Mirandinha, Napoleão, Neyde Taubaté, Nicanor, Olindo, Osvaldão, Padre Miguel, Paulo Jeton, Primo Rico, Profeta, Prometeu, Quem-Quem, Quirino, Roberval Taylor, Santelmo, Setembrino Republicano, Seu Jayme, Silva, Simplício, Tan-Tan, Tim Tones, Urubulino, Valentino, Véio Zuza, Vieira Souto, Virgílio, Vovó Zefa, Washington, Zé da Silva, Zelberto Zel e muitos outros personagens que são a cara do Brasil”. (…)
Chico Anysio morreu aos 80 anos de falência múltipla de órgãos, como Millôr Fernandes, aos 88 anos, depois do agravamento de suas doenças.
CHORO
No mesmo dia da viagem de Millôr, foi-se “A voz veloz da rainha do choro”, como noticiou a Folha de S. Paulo. Ademilde Fonseca, vítima de mal súbito, aos 91 anos, “tinha como marca registrada a destreza com que cantava versos enormes em velocidade inacreditável. Sua última gravação aconteceu no começo deste ano, em “Lágrimas e Rimas”, álbum da cantora Ana Bello que deve chegar às lojas em abril. As duas dividem vocais no choro “Arrasta-Pé” (Waldir Azevedo/ Klécius Caldas)”.
FRASE
“O que faz um papa, qual é a sua missão?”
Pergunta do ex-ditador cubano, Fidel Castro, ao papa católico Bento 16, com quem se encontrou durante visita a Havana, dia 28. Fidel foi excomungado pela Igreja Católica em 1962, após declarar adesão ao comunismo. (Folha de S. Paulo, (29), segundo relato do porta-voz do Vaticano, Federico Lombardi, para quem o encontro foi “muito animado”.)
José Aparecido Miguel, sócio da Mais Comunicação, www.maiscom.com, é jornalista, editor e consultor em comunicação.
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